À época em que o livro foi editado, a autora era Professora de História da Educação com Mestrado na área de Filosofia da Educação na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), concluído em 1975 e encontrava-se cursando o Doutorado na Universidade de Paris (Sorbonne).
Na obra, descreve-se o conflito escola particular-escola pública, durante a tramitação do projeto de lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 4024/61, utilizando-se para tal de publicações da época, e analisando as ideologias subjacentes aos grupos defensores de cada lado do conflito. É feita também uma análise das raízes históricas dessas ideologias, que se manifestaram no período estudado, o quinquênio 1956-1961.
Nesse livro, cujo trabalho foi originalmente apresentado como dissertação de Mestrado, a autora começa por demonstrar o divórcio existente, no Brasil, entre o plano das ideias (posições teóricas, propostas de reformas, objetivos proclamados) e o plano das instituições (estrutura escolar, modo de funcionamento, objetivos reais), fator pelo qual acredita não existir um sistema educacional no país, e investiga o porquê.
Para explicar a ausência de sistema educacional no Brasil, mostra como uma das hipóteses as posições ideológicas dos diferentes grupos que participam do conflito escola particular-escola pública, utilizando como referência a obra de Dermeval Saviani, Educação Brasileira: estrutura e sistema.
Distinguem-se, do lado da escola pública, pelo menos três posições: os liberais-idealistas, os liberais pragmatistas e os de tendência socialista; do lado da escola particular estavam a Igreja Católica e os donos de escola particular que se apoiavam na doutrina da Igreja para defender seus interesses.
A autora indaga:
- quais as notas distintivas das posições ideológicas para a não existência de sistema educacional brasileiro?
- que condições históricas tornaram possível o seu aparecimento e desenvolvimento?
A autora pretende responder à primeira indagação caracterizando as diferentes ideologias formuladas pelos seus porta-vozes, através dos documentos disponíveis. Já, em relação à segunda, pelo exame do contexto histórico em que se deu.
O pano de fundo é a tramitação do projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cujas polêmicas se iniciaram em novembro de 1956 e terminaram em 1961, com a aprovação da Lei 4024/61, período em que analisou as publicações relacionadas diretamente ao assunto em questão.
No texto, mostra-se que, tanto os que defendiam a escola pública, quanto os que defendiam a escola particular, o faziam em nome da liberdade de ensino, embora essa liberdade fosse entendida de forma diferente pelos dois grupos.
Situando a questão, mostra-se inicialmente que, utilizando a competência da União em legislar sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o General Dutra, Presidente da República, enviou ao Congresso Nacional, em outubro de 1948, um projeto de lei sobre o assunto, de orientação liberal, onde constava “a educação nacional inspira-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”.
Encaminhado ao Senado, o relator, deputado Gustavo Capanema, emitiu Parecer que paralisou a tramitação do Projeto, e só aproximadamente seis anos depois se iniciaram os debates na Câmara. Havendo um novo projeto-sugestão, de Lauro Cruz, inicia-se a mudança nos rumos da tramitação deste, mudando de um conflito entre a centralização e a descentralização da educação brasileira, para a combinação desta última com os interesses privados, conflito que, em 1956, irrompe abertamente entre escola particular-escola pública.
Na parte seguinte da obra, a autora se dedica a analisar os conflitos, nas diferentes publicações no período, entre os defensores da escola particular e os defensores da escola pública, sendo que, nesse caso, a escola particular é considerada como escola confessional. Ao conflitos, após debates entre Fonseca e Silva (escola particular) versus Anísio Teixeira (escola pública), se alastram pela imprensa. Anísio Teixeira e Florestan Fernandes, que também se envolve no debate, passam a ser alvos de ataques pessoais a seus posicionamentos político-ideológicos, nem sempre bem interpretados. Estes se utilizam de publicações de artigos na imprensa para a defesa de suas posições. O debate se centra no diferente entendimento que se dá à liberdade de ensino, visto que os defensores da escola pública se pautam por uma educação laica, pública e gratuita, enquanto que os defensores do ensino confessional/particular, se utilizam do conceito de liberdade como o direito da família na escolha da escola para seus filhos, que deveria, se necessário, ser custeada pelo Estado, visto que este não tinha o direito de se sobrepor ao direito da família à educação de seus filhos. Os defensores da escola pública eram considerados como tendo a intenção de implantar o socialismo no Brasil, “promovendo não só a laicização do ensino, mas também a laicização e o materialismo da vida[...], um plano de orientação materialista e ateísta do ensino nacional[...] em favor do monopólio estatal”.
Nessas discussões, manifestos surgem na imprensa, como o Manifesto dos Educadores, contra a possibilidade de utilização dos recursos públicos para manterem instituições privadas, e outros grupos, exprimindo pontos de vista divergentes, recorrendo a argumentos dos direitos da família e da Igreja.
Carlos Lacerda, em seu substitutivo ao Projeto de Lei de Diretrizes e Bases, agrada aos defensores da iniciativa particular em Educação, pois neste institui a liberdade de ensino, entendida no sentido dado pelas correntes privatistas, o que leva à rejeição pelos defensores da escola pública. No entanto, o substitutivo leva à intensificação dos debates sobre a questão escola particular-escola pública.
Em setembro de 1959, a Comissão de Educação e Cultura da Câmara Federal apresentou um substitutivo, que surge com redação final em dezembro desse ano, aprovado pela Câmara em janeiro de 1960, onde prevalece a orientação privatista, o que leva à intensificação da luta pelos defensores da escola pública, tentando que este não fosse aprovado no Senado, o que também aumentou o volume de publicações sobre a questão e também as manifestações estudantis.
Percebe-se então, dos debates, que as duas correntes defendiam a liberdade de ensino, porém a viam em diferentes concepções.
Para Wilson Cantoni, “a política básica da educação pública e leiga é garantir ao máximo a liberdade de consciência, que é considerada como a condição indispensável para a liberdade de pesquisa e de ensino, pois é a liberdade de pesquisa e de ensino que vai garantir o progresso do conhecimento[...] a escola pública e leiga é a única que, por força de seus próprios princípios básicos, garantirá a plena realização das possibilidades humanas do homem, desde que aceitamos a busca integral de consciência e pesquisa como seu corolário indispensável”.
Já para os defensores da iniciativa privada, a liberdade de ensino é identificada como liberdade de escolha por parte do indivíduo da escola que quer frequentar, considerando que a não possibilidade da referida escolha configura-se como monopólio estatal, totalitarismo, “num postulado socialista e diabólico, que cerceia as opiniões da família e subordina o indivíduo à prepotência do Estado...”
Numa última etapa de tramitação do Projeto de Diretrizes e Bases, organizou-se um movimento a partir de São Paulo,que se irradiou para outras regiões do país, pela defesa intransigente da escola pública, que teve como um dos frutos a realização da I Convenção Estadual em Defesa da Escola Pública, em maio de 1960, da qual saiu a Declaração de Princípios e onde foram apresentadas em plenário cinco comunicações, enfocando diferentes aspectos do tema.
Outros documentos em defesa da escola pública também foram redigidos, por exemplo, por Laerte Ramos de Carvalho, João Eduardo Villalobos, Fernando Henrique Cardoso, Roque S. M. Barros, dentre outros, que, embora às vezes por diferentes motivos, estavam irmanados na luta pelo mesmo objetivo.
O professor Florestan Fernandes, numa análise crítica do projeto de lei aprovado pela Câmara Federal, salienta que “o legislador sucumbiu às pressões reacionárias e conservantistas, contribuindo legalmente para a manutenção da estrutura da sociedade e a posição dentro dela, das camadas dominantes”.
Assim, diferentes correntes ideológicas (liberais-idealistas, liberais- pragmatistas e socialistas), por diferentes motivos, se unem em defesa da escola pública, enquanto que os proprietários de escolas particulares, sem terem ideologia própria, unem-se em torno da ideologia da Igreja Católica.
Em junho de 1961, o Projeto sobre Diretrizes e Bases da Educação, aprovado pela Câmara dos Deputados, entrou em discussão no Senado, onde diversas emendas foram apresentadas, inclusive um substitutivo, mas não foram acatados.
Restava a esperança de veto pelo presidente João Goulart, mas este apenas o fez a alguns artigos, sendo então o projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional convertido em Lei nº 4024, de 20 de dezembro de 1961, uma lei que os defensores da escola pública não reivindicavam.
Dessa forma, a autora conclui que, da análise do material bibliográfico referente ao conflito escola particular-escola pública, constatam-se diferentes orientações ideológicas, inspirando a ação das diversas pessoas envolvidas no conflito.
Para os privatistas, a bandeira da luta era a liberdade de ensino, entendida como direito de escolha; para os defensores da escola pública, os liberais idealistas entendem que a educação tem por objetivo a afirmação da individualidade, da originalidade, da autonomia ética do indivíduo, enquanto que para os liberais-pragmatistas, a defesa da escola pública se dá por sua maior eficiência e pelo atendimento às necessidades próximas e imediatas do país, enfatizando a realidade social do educando e a prática pedagógica. Já a corrente socialista, representada basicamente por Florestan Fernandes, considera a Educação em suas relações reversíveis com a sociedade, isto é, o homem modifica o meio e é também por ele modificado, numa relação dialética entre teoria e prática.
Após ter identificado e descrito as diferentes ideologias que interferiram no conflito escola particular-escola pública, a autora passa a explicar o significado dessas ideologias, através do exame da realidade histórica em que elas surgiram.
Para tal, serve-se do embate entre capitalismo e socialismo, sem utilizar-se de uma análise economicista, não os considerando apenas enquanto sistemas de produção.
Situa o período analisado, no qual se dá a consolidação do processo de industrialização, num modelo de substituição de importações.
Faz-se uma retomada do surgimento do capitalismo, a partir da Idade Média, descrevendo-o em suas transformações, nas diversas fases históricas – capitalismo mercantilista, capitalismo liberal ou concorrencial, capitalismo monopolista ou neocapitalismo(no qual se consolida o processo de industrialização brasileiro no período de 1956-1961, orientado fundamentalmente pela substituição de importações, considerado de forma associada ou dependente).
Focaliza as características brasileiras da época, como a estratificação social em classes sociais, que têm como importante elemento de mobilidade/ascensão social, a educação escolarizada, o que leva diferentes setores a reclamá-la.
No conflito enfocado, mostra-se que a ideologia liberal é a da classe dominante; assim, “a educação liberal consiste num processo de adaptação às relações capitalistas de produção, adaptação essa que assegura aos filhos da classe dominante as vantagens e privilégios de sua classe e adapta os filhos da classe dominada às condições de exploração a que são submetidos[...] uma educação ‘desinteressada’ para as elites, e um ensino primário mais algumas escolas profissionais para os trabalhadores”.
Em relação à ideologia da Igreja, no desenvolvimento da civilização ocidental, através do sistema socioeconômico capitalista, esta, não detentora dos meios de produção, coloca-se a serviço da classe dominante, enquanto Aparelho Ideológico do Estado. Essa posição se refere à Igreja enquanto Instituição, podendo existir dissidentes.
No tocante à ideologia socialista, pressupõe-se a negação e superação do próprio regime capitalista de produção, pela “constituição dos proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado”.
A autora conclui que no período do conflito, a base capitalista permaneceu a mesma, e a contradição se deu entre o setor moderno e o tradicional, dois modelos, ambos capitalistas, portanto entre dois setores da classe dominante pelo papel principal, o que originou uma LDB conciliatória.
Assim, comprova-se o divórcio entre as ideias educacionais e as instituições escolares brasileiras, cujas bases de divergências ideológicas residem no antagonismo de classes, sendo esses conflitos ideológicos uma das causas explicativas da ausência de Sistema Educacional no Brasil.
Conclui dizendo da necessidade de examinar a hipótese levantada por Saviani, na obra já citada, relativa à estrutura social de classes, que, segundo tudo indica, é a hipótese decisiva para explicar a ausência de Sistema Educacional no Brasil.
Situando o período analisado, de 1956 a 1961, na tramitação da Lei 4024/61, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a autora nos mostra algumas manifestações ideológicas na sociedade capitalista, em que existe o conflito de classes, entre os que detém os meios de produção e os que vendem sua força de trabalho, contextualizando historicamente o Brasil nesse período, e como essas lutas se refletem na educação, não possibilitando a existência de um Sistema Educacional no país, tampouco de uma educação que atenda aos interesses do proletariado.
Percebe-se um esforço da autora na análise documental das publicações da época, procurando situar as posições de figuras e grupos militantes no contexto apresentado, reconstruindo o período analisado e também esclarecendo os referenciais teóricos que utilizou em sua pesquisa.
Num salto analítico, podemos traçar um paralelo entre o período enfocado e o que vislumbramos na atual LDB, Lei 9394/96, pois nos parece que ainda não temos no Brasil um Sistema Educacional e também que, nas discussões da atual LDB, o embate continuou, visto que mais uma vez se aventou a possibilidade do financiamento público (através de bolsas, por exemplo) às escolas confessionais/particulares, bem como a luta da Igreja para incluir o ensino religioso nas escolas, o que, no estado de São Paulo, por exemplo, resultou na inclusão da disciplina Ensino Religioso, de caráter não confessional, nas oitavas séries, do Ensino Fundamental (aulas pagas pelo governo), mas também da possibilidade de, fora do horário regular de aulas, oferecer-se formação confessional, aos alunos que assim o desejarem, porém, até o momento, esta sem ônus para os cofres públicos.
No movimento e no momento atual do capitalismo brasileiro, escola pública e escola privada se apresentam como entidades radicalmente distintas. Ainda que ambas sejam escola, a semelhança institucional não é suficiente para mascarar a distinção essencial entre o interesse público a que uma se destina e os interesses privados a que outra se vincula, embora também, mesmo as escolas públicas estejam inseridas na lógica neoliberal.
Dessa análise, se depreende que, em nossa sociedade de base capitalista, o embate entre as ideologias continua, embora em outro contexto histórico, onde o neoliberalismo e a globalização do capital são o cenário, e as políticas públicas têm caráter mais paliativo que redistributivo.
Na verdade, parece-nos que a questão a fazer é sempre a mesma: escola para quem e para que?
BUFFA, Ester. Ideologias em Conflito: Escola Pública e Escola Privada. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
Nota:
[1] BUFFA, Ester. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
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