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06/01/2020

PRECONCEITO LINGUÍSTICO - MARCOS BAGNO

Primeiras palavras

Existe uma regra de ouro da Linguística que diz: “só existe língua se houver seres humanos que a falem”. E o velho e bom Aristóteles nos ensina que o ser humano “é um animal político”. Usando essas duas afirmações como os termos de um silogismo (mais um presente que ganhamos de Aristóteles), chegamos à conclusão de que “tratar da língua é tratar de um tema político”, já que também é tratar de seres humanos. Por isso, o leitor e a leitora não deverão se espantar com o tom marcadamente politizado de muitas de minhas afirmações. É proposital; aliás, é inevitável. Temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam.

O preconceito linguístico está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramática normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a gramática não é a língua. [...]

DEZ CISÕES
Para um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso

1) Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um usuário competente dessa língua, por isso ele SABE essa língua. Entre os três e quatro anos de idade, uma criança já domina integralmente a gramática de sua língua. Sendo assim,
2) aceitar a ideia de que não existe erro de português. Existem diferenças de uso ou alternativas de uso em relação à regra única proposta pela gramática normativa.

3) Não confundir erro de português (que, afinal não existe) com simples erro de ortografia. A ortografia é artificial, ao contrário da língua, que é natural. A ortografia é uma decisão política, é imposta por decreto, por isso ela pode mudar, e muda, de uma época para outra. Em 1899 as pessoas estudavam psychologia e história do Egypto; em 1999 elas estudam psicologia e história do Egito. Línguas que não têm escrita nem por isso deixam de ter sua gramática.

4) Reconhecer que tudo o que a Gramática Tradicional chama de erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação científica perfeitamente demonstrável. Se milhões de pessoas (cultas inclusive) estão optando por um uso que difere da regra prescrita nas gramáticas normativas é porque há alguma regra nova sobrepondo-se á antiga. Assim, o problema está com a regra tradicional, e não com as pessoas, que são falantes nativos e perfeitamente competentes de sua língua. Nada é por acaso.

5) Conscientizar-se de que toda língua muda e varia. O que hoje é visto como “certo” já foi “erro” no passado. O que hoje é considerado “erro” pode vir a ser perfeitamente aceito como “certo” no futuro da língua. Um exemplo: no português medieval existia um verbo leixar (que aparece até na Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I). Com o tempo, esse verbo foi sendo pronunciado deixar, porque [d] e [1] são consoantes aparentadas, o que permitiu a troca de uma pela outra. Hoje quem pronunciar leixar vai estar cometendo um “erro” (vai ser acusado de desleixo), muito embora essa forma seja mais próxima da origem latina, laxare (compare-se, por exemplo, o francês laisser e o italiano lasciare). Por isso é bom evitar classificar algum fenômeno gramatical de “erro”: ele pode ser, na verdade, um indício do que será a língua do futuro.

6) Dar-se conta de que a língua portuguesa não vai nem bem, nem mal. Ela simplesmente VAI, isto é, segue seu rumo, prossegue em sua evolução, em sua transformação, que não pode ser detida (a não ser com a eliminação física de todos os seus falantes).

7) Respeitar a variedade linguística de toda e qualquer pessoa, pois isso equivale a respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa como ser humano, porque

8) a língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres humanos Nós somos a língua que falamos. A língua que falamos molda nosso modo de ver o mundo e nosso modo de ver o mundo molda a língua que falamos. Para os falantes de português, por exemplo, a diferença entre ser e estar é fundamental: eu estou infeliz é radicalmente diferente, para nós, de eu sou infeliz. Ora, línguas como o inglês, o francês e o alemão têm um único verbo para exprimir as duas coisas. Outras, como o russo, não têm verbo nenhum, dizendo algo assim como: Eu – infeliz (o russo, na escrita, usa mesmo um travessão onde nós inserimos um verbo de ligação. Assim,

9) uma vez que a língua está em tudo e tudo está na língua, o professor de português é professor de TUDO. (Alguém já me disse que talvez por isso o professor de português devesse receber salário igual à soma dos salários de todos os outros professores!)

10) Ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa respeitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. Ensinar para o bem é acrescentar e não suprimir, é elevar e não rebaixar a autoestima do indivíduo. Somente assim, no início de cada ano letivo este indivíduo poderá comemorar a volta às aulas, em vez de lamentar a volta às aulas! [...]

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