Os anos 1980 marcaram uma abertura política no país. Este período se destaca pelo início da construção da chamada cidadania política, que transcende a democracia representativa, aproximando-se da democracia participativa, como nova alternativa ao exercício político. Passa-se a entender a democratização como real participação da sociedade civil nas discussões públicas.
A questão da descentralização passa a ser discutida e a partir da Constituição (1988) a descentralização apresenta-se como palavra de ordem no setor político e administrativo.
Assim, a descentralização caracteriza-se como exigência histórica para a consolidação da democracia no país.
Porém, nos dizeres de Abranches (2003, p.13),
é preciso considerar que o termo descentralização está sempre carregado de conotações positivas, mas, como todo instrumento de ação governamental, não possui qualidades exclusivamente precisas [...]; se de um lado pode representar um mecanismo de participação que permite o retorno do poder à sociedade civil, por outro, pode caracterizar-se como uma forma de reforçar o aparelho de dominação, encobrindo uma relação autoritária.
A discussão em torno da descentralização a coloca em contato com vários outros conceitos – democracia, autonomia, participação (plano político), desconcentração, prefeiturização, municipalização (plano administrativo).
Cabe uma reflexão sobre a descentralização como estratagema estimulado pelas políticas neoliberais, amparadas pelo discurso da modernização, visando diminuir a ação estatal na área do bem-estar social, a fim de reduzir despesas.
Segundo Stein (1997 apud ABRANCHES, 2003, p.14) a intenção do processo de descentralização é “neutralizar as demandas sociais, desconcentrando os conflitos e envolvendo a população na busca de soluções para seus próprios problemas”.
Por outro lado, outras propostas de descentralização têm o objetivo de ampliar a esfera pública envolvendo o Estado e a sociedade civil.
Desta forma, a descentralização pode ser analisada sob dois aspectos: ligada às discussões sobre as ações governamentais e/ou associada às ações participativas da sociedade civil nos assuntos públicos
Podemos então conceituar descentralização como transferência de autoridade legal e política, que se liga a um princípio de reforma do Estado, numa nova relação deste com a coisa pública e com a sociedade civil.
Pensamos então a descentralização como um instrumento de ação para o desenvolvimento político da sociedade. Desta forma, pressupõe a existência da democracia, da autonomia e da participação.
Algumas pré-condições devem existir para que a descentralização viabilize processos de participação popular, como o acesso às informações necessárias para a gestão, a garantia de assento aos segmentos menos poderosos da sociedade na composição de conselhos diretivos, a transparência dos processos de gestão e tomada de decisões.
Segundo Campos (1997 apud ABRANCHES, 2003, p.22), “a viabilização de um ordenamento político/institucional/democrático está diretamente associada à participação da sociedade civil no processo de concepção e gestão das políticas públicas”.
Em decorrência disso, segundo Gohn (1990 apud ABRANCHES, 2003, p. 22), “a nova estrutura de poder irá colocar em crise as atuais políticas públicas, suas propriedades, seus mecanismos de elaboração e de controle. Uma nova estrutura estatal poderá surgir dos conselhos, articulando a democracia representativa e a democracia direta”.
Pode-se garantir a participação pelas experiências colegiadas, e outras vivências que propiciem amadurecimento das relações sociais e uma atuação mais política dos indivíduos.
Para Arendt (apud ABRANCHES, 2003, p. 25) é importante o resgate do espaço político e a inserção dos indivíduos no espaço público, o que pode auxiliar na compreensão da dinâmica da participação, pois proporcionam uma democracia participativa.
Nos dizeres de Marodo e Simon (in OLIVEIRA, 2001, p. 144), poderiam ser distinguidos quatro tipos de descentralização: a desconcentração (delegar responsabilidades administrativas a níveis inferiores dentro das agências centrais), a delegação (transferência de responsabilidades a organizações que estão fora da estrutura burocrática), a devolução (transferência a unidades de governo subnacional fora do controle direto do governo central) e a privatização (transferência de responsabilidades ao setor privado).
Esses autores nos mostram ainda alguns problemas recorrentes na descentralização:
- motivação financeira da transferência;
- falta de diagnósticos prévios e de projeto educativo orientador;
- ausência de administradores qualificados nas jurisdições para cumprir funções ampliadas, mais complexas e qualificadas, o que pode levar à deterioração dos serviços;
- ausência de tecnologias necessárias para a gestão;
- ausência de dados em relação ao sistema educativo para tomada de decisões de política educativa;
- modelos de gestão provincial inspirados nos de nível nacional – os processos de decisão não incluem majoritariamente mecanismos de participação, o que dificulta a necessária democratização da gestão;
- quebra do movimento sindical docente;
- a descentralização não significa maiores níveis de democratização do sistema nacional de educação.
Embora referenciados à Argentina, parecem-nos semelhantes ao que ocorre no Brasil.
Segundo Rosar (in OLIVEIRA, 2001, p. 113), “a descentralização pode significar a possibilidade de aumentar a participação não dos indivíduos em geral, mas de determinados indivíduos e grupos”, o que pode garantir a hegemonia dos grupos que detém o controle. Em outros casos, “alguns grupos que estão no governo insistem no fomento de políticas de descentralização porque seus interesses estariam sendo resguardados, reduzindo-se o poder de outros grupos que também estão no governo”. Desta forma, “os grupos que detêm o poder utilizam estratégias de centralização ou de descentralização na medida em que resguardam seus interesses”.
Nos alerta Licínio Lima, em trabalho realizado em Portugal, a respeito de descentralização e autonomia:
Sempre que essencialmente apoiadas/legitimadas por razões de ordem técnica e instrumental, a descentralização e a autonomia são despojadas de sentido político democrático-participativo e são frequentemente transformadas em instrumentos e técnicas de gestão, tantas vezes ao serviço de políticas de signo contrário. Não é seguramente por acaso que as questões da descentralização e da autonomia passaram a constituir temas centrais nas políticas educativas de feição neoliberal, reconceptualizadas por forma a apoiar a recentralização política que tem ocorrido em diversos países (1997, p.8 apud ADRIÃO, 2001, p. 160).
Torna-se necessário desvelarmos o sentido político das perspectivas descentralizadoras e de valorização da autonomia escolar, para que não apoiemos iniciativas centralizadoras e padronizadoras da atividade pedagógica, em nome da defesa da presença do Estado na manutenção da educação.
Nos dizeres de Dalila Oliveira,
A autonomia não se limita às questões de ordem administrativa e financeira, revela também a possibilidade de uma escola criar ou definir o seu projeto pedagógico, por isso é antes de tudo política. A descentralização, comumente designada de autonomia administrativa e financeira, expressa um movimento de atribuir maior mobilidade administrativa às unidades escolares, uma vez que retira certas responsabilidades da União, dos Estados e/ou dos Municípios e as repassam às escolas diretamente (1995, p.6 apud ADRIÃO, 2001, p. 188).
Descentralização torna-se pré-condição para a autonomia política e pedagógica da escola, para que esta tenha poder decisório.
Percebe-se que, para as escolas subordinadas à SEE, a descentralização dos poucos recursos financeiros aliou-se ao aumento da responsabilização pelos resultados – evasão, retenção, Saresp, parcerias (captação de novos recursos).
Logicamente que, subordinando-se a um conjunto de regras legal, não há como dizer que existe autonomia irrestrita (é sempre relativa). Porém parece haver desconfiança dos órgãos centrais em relação à própria escola, como capaz de elaborar/construir, executar/gerir/acompanhar e avaliar seu próprio projeto político-pedagógico.
Autonomia, numa perspectiva democrática, articula-se a mudanças de natureza política, que pressupõem mudanças na organização e no financiamento do Estado, o que levaria à necessidade de descentralizar a ação governamental, ampliando a participação dos usuários e educadores na definição e avaliação da política educacional, possibilitando decisão local para a gestão do projeto político-pedagógico da escola.
Referências:
ABRANCHES, Mônica. Colegiado Escolar – Espaço de participação da comunidade. São Paulo: Cortez, 2003. 110 p. (Questões da Nossa Época 102)
ADRIÃO, Theresa Maria de Freitas. Autonomia Monitorada como eixo de mudança: Padrões de gestão do ensino público paulista (1995-1998). 2001.202 f. (Tese de Doutorado).USP, SP, 2001.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2003.
OLIVEIRA, Dalila Andrade (org.). Gestão Democrática da Educação – Desafios Contemporâneos. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
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