Resenha de livro: NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado Para a Sociedade Civil: Temas Éticos e Políticos da Gestão Democrática. São Paulo: Cortez, 2004.
Resenha por Maria Ângela Paié Rodella Innocente1
O autor é cientista político e professor livre-docente da UNESP. O livro reúne reflexões e análises do autor, ao longo de cinco anos. Os textos, originalmente, foram preparados para serem apresentados em cursos e seminários, porém, foram refeitos para o livro, numa intenção de totalização. As reflexões pretendem dialogar com a política nacional, como parte da política mundial. O centro de interesse é ocupado pela gestão democrática e os temas a ela associados: o Estado, a sociedade civil, a participação, o universo organizacional e a qualificação dos gestores. Assim, o livro se destina a todos que se interessam por esta temática, proporcionando uma reflexão elaborada com profundidade e sutileza.
O tema é introduzido mediante um retrospecto de quarenta anos da história do Brasil.
A partir de 1964, desenha-se uma alteração nas formas do Estado e na qualidade do processo sócio-político, numa rápida e desigual modernização, de elevado custo social.
Num quadro de inserção mundial em que a agenda política se universalizou, o governo (Lula/PT) escolheu prolongar a tradicional subordinação das políticas sociais aos imperativos da gestão econômica e do mercado. O Estado é visto como causador de mal à sociedade, ao mercado e à liberdade. O autor questiona: como construir nova hegemonia, sem o Estado?
Contra essa situação, ocorre pressão social, com zonas de contestação, mas sem campos de força hegemônicos. Para alterar a situação, o processo de mudança necessita que o ético-político e o social prevaleçam sobre a lógica da economia e dos interesses do mercado. Nesse sentido, o Estado é um recurso técnico e ético da reforma social, pois atua como base operacional e agente principal desta, uma vez que, sem o Estado, o social vira território de caça do mercado.
O ator hegemônico é aquele que consegue sair de si, ir aos demais e construir consensos, qualificando-se para governar com metas reformadoras fortes e que apresenta um projeto para toda a sociedade.
A partir desta introdução, o autor passa a abordar a temática em capítulos.
Situando o Brasil nos anos 1990, caracteriza-o como um país à procura de sua identidade e de um projeto nacional. Esta procura obrigou o país a confrontar-se com suas insuficiências. O contexto incluiu a emergência de uma cultura democrático-participacionista, com relevância do protagonismo social, além de um reformismo passivo – mais adaptativo que criativo. O Estado tornou-se mais ágil, menor e mais barato, mediante privatização, terceirização e parcerias público-privadas. Houve um recuo do Estado nacional diante da economia mundial e dos mercados, com desvalorização do Estado aos olhos do cidadão e desorganização de seu aparato técnico e administrativo.
É a dimensão mais articulada com a sociedade civil, pensada como “hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade”, que conforma o “conteúdo ético” do Estado. O Estado é sempre uma composição dialética de sociedade política e civil, ou seja, “hegemonia couraçada de coerção”(Gramsci).
Porém, da primeira para a segunda geração da reforma, que deveria construir um novo Estado, houve uma ruptura, estacionando-se na desconstrução neoliberal do Estado. Assim, quanto mais o mercado se desvencilhou do Estado, mais se mostrou despreparado para funcionar sem um Estado.
O reformismo abrange descentralização, participação, cidadania e sociedade civil, com a emergência do terceiro setor, atuação do voluntariado e responsabilidade social corporativa.
Porém, o discurso da reforma está saturado. Então, como proceder nas circunstâncias atuais?
Essas circunstâncias englobam a crise da política e da sociabilidade, mudança acelerada, mundialização dos mercados, intercâmbios e amplas redes info-comunicacionais. A ideologia neoliberal está sendo suplantada pelo seu oposto, uma politização da economia e do mercado global.
A agenda de reforma do Estado é simultaneamente uma agenda de reforma da política, que inclui: crítica ao discurso monetarista e mercadológico e ao gerencialismo; Estado como instrumento de governo e ambiente indispensável para o contrato social; compreender os impactos da globalização sobre o Estado, as novas funções e responsabilidades estatais; Estado como um construtor de cidadania e seu principal fiador; modernizar o aparato administrativo do Estado; gestão pública transparente, responsável, eficaz e eficiente; não subalternizar, nem menosprezar os funcionários públicos; cidadãos se encarregarem do governo, por meio de seus representantes eleitos; controle social sobre a destinação e aplicação dos recursos públicos; considerar pressupostos éticos e diretrizes políticas, para as decisões; descentralização política e administrativa, sem desestatização; participação/contestação na reforma democrática.
Como eixo principal do livro - um Estado para a sociedade civil, a questão central não é o tamanho do governo, mas as atividades e os métodos deste. Sociedade civil e Estado são vistos como partícipes de um projeto emancipador, num Estado democrático.
Nesse contexto, o projeto democrático encontra-se imerso num paradoxo. Quanto mais parece aumentar sua viabilidade, mediante maior mobilidade social, democratização das informações e quebra de hierarquias e autoridades, maiores vão ficando os obstáculos para sua plena realização.
Há um paradoxo entre capitalismo/globalização/internacionalismo e democracia/território/nacionalismo/auto-suficiência, pois a globalização comprime os territórios nacionais e o protagonismo estatal. Existe ainda um embate entre desenvolvimento econômico/cultura virtual/ciberspaço e os processos políticos.
No entanto, a resposta à globalização se dará no campo político global.
A reforma do Estado concebe nova sociedade e novo conjunto de articulações entre economia e política, Estado e sociedade civil, instituições, grupos e indivíduos, superando e dando outra consistência ética às operações que se dedicam a ajustar e baratear os governos e os aparatos administrativos.
É no âmbito do projeto democrático que se põe efetivamente a questão da sociedade civil. Com a disjunção entre política e sociedade civil, as sociedades tornaram-se modernas e globais quase ao mesmo tempo, de forma que o poder foi retirado da política.
Com a globalização (acumulação flexível, crise da soberania, império do mercado, radicalização da cultura individualista, informacionalização) ocorreu a falência da política.
A sociedade civil tem dificuldade de chegar a consensos, pois deseja menos Estado para certas coisas e mais Estado para outras.
Uma política democrática deverá controlar movimentos do capital e colocá-los sob accountability democrática, numa lógica social diferente da lógica da competição e da rentabilidade capitalista.
Para que se materialize a gestão participativa, torna-se necessário superar os gargalos da burocracia pública e alcançar soluções positivas para os diferentes problemas comunitários. A questão da participação engloba demanda social e resposta governamental.
O enfraquecimento do Estado, devido ao ajuste e redução de seu tamanho ao invés de uma reorganização ou radicalização democrática, leva a governos fracos, uma vez que Estados fracos não podem produzir governos fortes.
Existe um cerco aos governos, por meio de algumas fontes geradoras de pressão: transnacional, mercado, subnacional e sociedade civil.
O autor propõe a participação política da sociedade como um todo, mediante a organização da vida social, numa democracia que se torne mais direta que representativa, por meio de participação, representação, comunidade política, pluralismo e liberdade individual.
Atendendo a uma agenda democrática, com descentralização participativa e participação cidadã, a gestão participativa envolveria: modificar a articulação entre governantes e governados; novas formas de controle social (accountability); operar em termos descentralizados e fomentar parcerias; operar além do formal e do burocrático, incentivando a iniciativa e a criatividade; alterar o gerenciamento de recursos e procedimentos; orientar-se por critérios inteligentes de flexibilidade, eficiência e agilidade; novas formas de tomada de decisões e gerenciamento público; avançar com agregação de conhecimento científico e recursos humanos qualificados. São fatores que vão da escola à política, da cultura às lutas sociais, do esforço pessoal ao vínculo associativo.
Nesse contexto, a Educação deverá formar cidadãos capazes de deliberar em esferas dominantemente argumentativas. A participação não pode ser dissociada da educação para a cidadania, nem da formação de uma cultura política, nem da capacidade linguística de discernimento, ou seja, de uma educação para a emancipação.
Assim, a gestão participativa passa pela negociação de políticas públicas, buscando neutralizar o padrão tecnocrático e o paternalismo.
O autor propõe Escolas de Governo, que formem para atuar nesta gestão.
Reportando-se a Morin, diferencia capacitação – opera com disciplinas e saberes fragmentados, de formação – procura a articulação, propondo uma formação para a ação e para a reflexão, a fim de que se pensem e se desenhem projetos de Estado e de sociedade.
Mediante a discussão empreendida, concordamos com a proposta do autor ao pensar uma transformação social, uma nova economia, numa cultura diversa, no plano coletivo e no individual, considerando o poder estatal e os micropoderes, numa perspectiva renovada de Estado com novos modos de gerir organizações, levando a política para todos os espaços e buscando o acesso a formas de vida mais justas e mais inteligentes.
1 Mestre em Educação – UNICAMP, na área de Políticas de Educação e Sistemas Educativo; Supervisora de Ensino na SEE de São Paulo, Docente do Ensino Superior, Consultora Educacional..
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